26.11.06

GENI E A ÉTICA Por Beto Volpe

Joãozinho chega da escola, confuso:
- Pai, hoje a professora deu uma aula estranha, não entendi nada. Ela falou sobre ética. O que é isso, papai?
Ao que o pai responde: - Vou te dar um exemplo: imagine uma velha senhora, bem pobrezinha, que vem à nossa loja, faz uma compra de dez reais e, por engano, paga com uma nota de cinqüenta. Aí entra a ética, o papai conta pro sócio.
Nunca se falou tanto em ética em nosso país. É a Geni do momento: todos a desejam, todos a possuem. E em um momento eleitoral a classe política transforma essa veneração pela ética em uma espécie de epidemia. E não é somente a classe política, o discurso ético está presente também nos gestores públicos em saúde, nos laboratórios farmacêuticos, nos médicos e profissionais da área da saúde e do próprio movimento social. É a ética na saúde pública.
O problema é que esse conceito muitas vezes se restringe a essa área mesmo, a conceitual. Os interesses político-partidários fazem com que de dois em dois anos vivamos um festival de desastrosas indicações para cargos estratégicos dentro do SUS. Gestores públicos vivem às voltas com escândalos envolvendo aplicação de verbas em metas muitas vezes questionáveis através de processos e licitações muitas vezes suspeitas. Laboratórios farmacêuticos, especialmente os detentores de patentes, se opõem a uma visão de saúde pública mais equilibrada entre a questão humanitária e o lucro exigido pelos seus acionistas. Médicos e profissionais da área da saúde por vezes esquecem dos juramentos feitos em suas formaturas e tratam os clientes do SUS (também chamados de pacientes) de forma desrespeitosa e por vezes desumana, trazendo para sua prática o conceito "aidético", onde a enfermidade se sobrepõe ao ser humano. E um movimento social que por vezes parece que esqueceu que, se temos um dos melhores programas de AIDS do mundo (alguns crêem que seja o melhor), esse foi conquistado pela força do ativismo. A chave para o sucesso do Programa Nacional de DST/AIDS é e sempre foi a participação cidadã, é o controle social exercido pelas pessoas vivendo com HIV e pelas ONGs que faz com que se implante, mantenha e avance em políticas públicas modernas e eficientes. E a ética também está no lema do VI Congresso da Sociedade Brasileira de DST e II Congresso Brasileiro de AIDS, ocorrido em Santos de 17 a 20 últimos: "DST/AIDS no SUS: Compromisso e Interfaces". A escolha do tema não poderia ter sido mais feliz, ainda mais quando temos para um futuro imediato a implantação do Pacto pela Saúde, que irá redimensionar as interfaces dentro do SUS e que necessitará, mais do que nunca, de comprometimento para que esse processo tenha êxito. Inclusive e principalmente do controle social, onde a força do ativismo seja a prioridade e não a mera execução de projetos e prestação de serviços para os gestores como tem se verificado como tendência, confundindo a atribuição de papéis de cada um dentro da resposta brasileira. Vivemos cada qual em seu pequeno espaço dentro do amplo universo chamado AIDS no SUS e por vezes nos passam desapercebidos problemas específicos enfrentados pelos vários setores dessa estratégia. E os problemas são muitos, porém o principal deles é o conceito de que a AIDS tornou-se uma doença crônica, sob controle. Por conta disso temos uma queda significativa nas ações de prevenção por parte dos gestores municipais, onde a dificuldade encontrada para a contratação de agentes é a desculpa usual para a não execução de metas e acúmulo de verbas de incentivos sem resultados alcançados. Retrocesso que também assola a vida das pessoas vivendo com HIV, com a revogação ou criação de entraves para a plena garantia de direitos como de benefícios sociais e previdenciários, estes de forma sistemática e programada. O conceito de grupo de risco é novamente reforçado com a manutenção das restrições de doação de sangue pelos gays e outros HSH. Quem esteve a par da Conferência da Sociedade Internacional de AIDS ocorrida ano passado no Rio de Janeiro ainda lembra que foi unânime a opinião de que sem transferência de tecnologia e produção local de medicamentos não será possível suprir a demanda mundial e equilibrar as relações entre capital e humanidade na prática de mercado e preços internacionais.. Vemos no Brasil nossas mulheres e nossos adolescentes cada vez mais vulneráveis à infecção, lembrando o quadro sombrio pintado na mesma Conferência onde foi relatado que em algumas regiões da África a população é exclusivamente masculina pois todas as mulheres haviam morrido e órfãos cantam em suas cantigas de roda o momento em que levaram os caixões dos pais para serem sepultados. E recentemente na Conferência de Toronto, foi reafirmada a existência de uma "super-infecção" em curso no mundo e que a mesma já estaria no Brasil, com prevalência de até 80% de vírus recombinantes em alguns serviços de saúde, sem que ainda se saiba ao certo que impacto trará para a assistência e para a expectativa de vida das pessoas afetadas. No início da epidemia costumava-se ironizar dizendo, "ai que saudades da sífilis e da gonorréia". Hoje, a ironia é "ai, que saudades do vômito e da diarréia". Os efeitos colaterais têm se transformado em um pesadelo tanto para as pessoas vivendo com HIV como para os profissionais envolvidos em seu manejo. Em 1998 surgiu a lipodistrofia, para a qual a ciência deu sua pronta resposta com técnicas e alternativas para minimizar seu impacto, porém a resposta pública veio oficialmente apenas em 2004 com a publicação de portaria contendo uma série de procedimentos. E hoje, em 2006, ainda são muitas as dificuldades enfrentadas pelas pessoas vivendo com HIV em ter atendido apenas um de seus itens, o preenchimento facial. Casos de osteonecrose que estão sendo tratados à base de diclofenaco, afinal, são mais muito baratos do que próteses. Assistimos a uma verdadeira epidemia paralela de linfomas ocorrendo em perfis diversos dos usuais, retardando seu diagnóstico e colocando em sério risco a manutenção da vida, quanto mais a qualidade da mesma. Sem falar nos riscos cardiovasculares e nos efeitos neurológicos que vêm avançando em gravidade e fazem com que fique difícil engolir, de novo. Estamos atravessando uma fase muito delicada da história da humanidade. As alterações climáticas que faziam parte de nosso imaginário e dos filmes de ficção científica, hoje são uma realidade e ainda não se sabe qual o impacto nos seres vivos de nosso planeta. Sabe-se, no entanto, que gerarão queda na produção de alimentos e bens, aumento da fome e das desigualdades sociais, recrudescimento de conflitos e guerras, tudo isso desaguando nos sistemas de saúde. A simultaneidade de epidemias como AIDS, tuberculose, hepatite C e aviária, esta já podendo ser avistada no horizonte nos fazem crer que os desafios irão aumentar, e muito. Portanto, como diz o lema do Vivendo deste ano, promovido pelos Pela Vidda do Rio e Niterói: CHEGA DE LERO-LERO! Há que se fazer um Pacto pela Ética, onde esta seja representada pelos compromissos e interfaces de cada integrante desse sistema. Há que se ter um comprometimento maior com a ampliação de ações e estratégias, e não apenas a manutenção do que já foi conquistado. Que se ter agilidade nos processos de incorporação de novas estratégias de enfrentamento à epidemia. Que se fortaleça as interfaces com demais setores sociais e governamentais no enfrentamento à epidemia, fazendo com que a indústria, o comércio e os demais órgãos governamentais se aliem a esta luta de forma afirmativa, com incremento da responsabilidade e dotações orçamentárias garantindo esse incremento de ações na luta contra a AIDS. Que o conceito de ética seja transformado em realidade nas menores ações de todos nós nesse enfrentamento. E que Geni volte a ser apenas a musa maldita que sempre foi e não mais o sinônimo de ética na saúde pública. A VOZ DAS PESSOAS VIVENDO COM HIV DEVE SER OUVIDA COM MAIOR COMPROMETIMENTO, TANTO DENTRO DOS CONSULTÓRIOS COMO EM TODAS AS INTERFACES PROVOCADAS PELA EPIDEMIA, QUE SE REINVENTA A CADA INSTANTE E PARA QUE SE TENHA UMA RESPOSTA RÁPIDA E EFICIENTE A NOSSA PERCEPÇÃO DOS NOVOS DESAFIOS DEVE SE ANTEPOR À EPIDEMIOLOGIA. Tudo o que permeia o universo das verdades transitórias chamado AIDS tem como origem um vírus cuja principal característica é a capacidade de rever estratégias de forma imediata e atacar de forma cada vez mais insidiosa e desafiadora. Se nós, todos nós, não tivermos essa mesma capacidade, ele ganha a luta.

Beto Volpe é presidente do Grupo Hipupiara e Ponto Focal Brasil da Rede Latino-americana de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS
Texto encaminhado pelo Forum Nacional de Hepatites