15.7.07

Transplante de fígado após um ano de Meld

enviado por Micky Woolf - Unidos Venceremos
Completa-se hoje um ano da aplicação do critério Meld (Model for End-Stage Liver Disease) para conferir prioridade aos candidatos a transplante de fígado. Os resultados iniciais sugerem ter havido um benefício efetivo para os que mais necessitam do procedimento. Mantiveram-se as vantagens e se corrigiram falhas do critério cronológico anteriormente adotado. Desde 1985, quando foi realizado o primeiro transplante de fígado com sucesso no País, já foram realizados 7.400 procedimentos. Apesar disso, mais de 7 mil pacientes aguardam nas listas de espera. Não havendo enxertos para todos os candidatos, é necessário escolher um critério justo e eqüitativo para distribuí-los. Desde logo, deve-se enfatizar que os candidatos a transplante se dividem em dois grupos: Portadores de insuficiência hepática progressiva (cirroses) que nos estágios terminais apresentam maior risco operatório, capaz de pôr em risco o êxito do transplante, com desperdício do enxerto; portadores de doenças localizadas no fígado, mas que evoluem até o óbito sem afetar a função hepática (câncer e doenças metabólicas). Apresentam baixo risco operatório e, portanto, maior possibilidade de sucesso do transplante. No contexto do Meld, essas doenças são chamadas "situações especiais". Em 1997 foi adotada a lista única cronológica, que destina os enxertos aos candidatos conforme a ordem de sua inscrição. À época, essa solução pareceu a mais adequada para evitar privilégios observados anteriormente. Entretanto, com o decorrer do tempo, tornaram-se aparentes graves defeitos desse critério. Para garantir uma melhor posição na lista pacientes passaram a ser inscritos precocemente, ainda sem indicação indiscutível para transplante, aumentando as listas e o tempo de espera, que em São Paulo superava três anos. Os pacientes mais graves morriam antes do transplante, que beneficiava outros menos graves, inscritos há mais tempo. Além disso, o critério cronológico não permitia antecipar o transplante para as chamadas "situações especiais", como para os tumores malignos do fígado, cuja rápida evolução aumentava o número dos que morriam antes do transplante. Para evitar essas distorções, em 15 de julho de 2006 o Ministério da Saúde determinou a substituição do critério cronológico pelo Meld, que dá preferência aos inscritos com maior gravidade, calculada por meio de uma fórmula matemática baseada em exames laboratoriais. Quanto maior o valor obtido, maior a gravidade e maior a precedência. Permite o uso de fatores de correção para beneficiar candidatos pediátricos e os portadores de "situações especiais". Resultados oficiais da Central de Transplantes de São Paulo, onde foram realizados 340 transplantes nos últimos 12 meses, mostram que o uso do novo critério: Aumentou o controle pelas centrais de transplante; reduziu o número de inscrições e a lista de espera; permitiu transplantar rapidamente pacientes graves, mesmo que recém-inscritos; não modificou a sobrevida dos transplantados; favoreceu o atendimento de pacientes pediátricos, que passaram de 10% para 18%, e de pacientes com câncer, que passaram de 3,4% para 33,5% do total de transplantes; destinou apenas um terço dos enxertos a pacientes graves; não conseguiu reduzir a mortalidade da lista de espera, que, ao contrário, aumentou de 14,38% para 22,35%. A interpretação desses resultados permite alguns comentários: A sobrevida semelhante dos transplantados nos períodos pré e pós-Meld decorre de um fato da maior importância. Com o critério cronológico, os fígados de cadáveres eram destinados a um "mix" de candidatos que incluía tanto pacientes de alto risco operatório quanto outros menos graves (inscrições precoces), cuja função hepática mais preservada lhes propiciava um melhor resultado. Note-se que os bons resultados globais eram obtidos graças a uma concessão ética. Transplantavam-se pacientes que podiam esperar, em detrimento de outros mais graves, que morriam antes de serem transplantados. O critério Meld corrigido para "situações especiais" faz com que seja operado um "mix" semelhante quanto ao risco operatório, mas completamente diferente no que diz respeito ao aspecto ético das prioridades conferidas. Também inclui pacientes graves, de alto risco operatório, mas substitui pacientes precocemente inscritos por outros também de baixo risco, mas com indiscutível indicação para transplante (câncer e pediátricos). Esta a razão de a sobrevida global pós-Meld não ter piorado, como previsto por muitos de nós. A redução do número de novas inscrições provavelmente decorreu da inutilidade de incluir precocemente candidatos com pontuação baixa. Serão sempre preteridos pelos que apresentam pontuação mais alta, independentemente do tempo que permaneçam na lista. O uso de apenas um terço dos enxertos para pacientes graves foi conseqüente à prioridade conferida a candidatos pediátricos e, principalmente, aos portadores de câncer. O aumento da mortalidade em lista deve ser interpretado com reservas, considerando que, com o Meld, as centrais de transplante controlam periodicamente os pacientes inscritos. Dessa forma, podem ter sido registrados óbitos que antes passavam despercebidos. Entretanto, é provável que a destinação de apenas um terço dos enxertos para pacientes graves tenha também contribuído para esse resultado. Uma análise global mostra que o Meld representa um progresso, com a particularidade de permitir ajustes adicionais na medida em que se tornem necessários. Entretanto, torna-se aparente desde já a oportunidade de diminuir o fator de correção usado para pacientes com câncer a fim de aumentar o atendimento de pacientes graves e diminuir a mortalidade na lista de espera.

Silvano Raia, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, é pioneiro dos transplantes de fígado no Brasil

fonte: www.estadao.com.br