6.7.07

CONSIDERAÇÕES DO PRESIDENTE DA ONG CONFIANTES NO FUTURO WALDIR PEDROSA SOBRE O PROJETO DE LEI DE AUTORIA DO SENADOR TIÃO VIANA.

PROJETO DE LEI DO SENADO Nº PLS 00219/2007 DE AUTORIA DO SENADOR TIÃO VIANA
Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a oferta de procedimentos terapêuticos e a dispensação de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
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As doenças e a morte são eventos naturais na vida de qualquer indivíduo. Estivéssemos na era da pedra lascada ou sendo contemporâneos dos dias atuais esta constatação não se modifica.
O progresso social, tecnológico e científico, juntamente com os avanços da medicina no campo sanitário, preventivo e social impôs novos rumos na abordagem das doenças. Por traz destas conquistas, costumamos esquecer que a consciência advinda das pressões sociais e dos ideários humanistas, junto com as reinvidicações, foi o motor fundamental das melhorias das práticas de saúde e melhores condições de vida no Brasil e fora dele.
Esta história longa, cheia de atropelos, detalhes e em companhia de múltiplos fatores influentes, forjou a consciência sanitária e a valorização da medicina preventiva e social.
Dentre as conquistas da humanidade encontra-se o direito à saúde entendido como um estado de bem estar físico, psíquico e social. O estado teve que incorporar este avanço em sua carta magna. O estado justo, democrático e de direito passou a ter como norma estender a cobertura de suas ações a camadas sempre mais expressivas da população.
Mesmo as medidas adotadas pelos regimes populistas e ditatoriais com caráter demagógico, passaram a ser incorporadas ao direito do cidadão. O estado populista ou demagógico caminha quase sempre subestimando o grau de consciência do seu povo. Executa ações de afogadilho e sem planejamento. Não hierarquiza, não faz projeções, não produz medidas que reduzam as distorções, não concentra esforços para uma mesma finalidade. Ao contrário, como uma colcha de retalhos justapõe e multiplica a burocracia e a engrenagem para perseguir um mesmo fim. E o pior de tudo, não aproveita a oportunidade de racionalizar e de ter um olhar integrador sobre instâncias que se inter-relacionam.
Tratar a doença do indivíduo, tão somente, não bastava e não basta nos dias presentes. Uma cidade ou um país, para solucionar os problemas relacionados à saúde de sua gente, necessita tornar efetivas, medidas que em seu conjunto comporão uma gama extensa de itens.
Por isto se verifica que saúde tem relação com tantas coisas como, por exemplo: liberdade, democracia, direito, educação, saneamento básico, economia, política, pesquisa, ética, moral, modelo social de desenvolvimento, cultura, desigualdade social, conforto, condições de vida, trabalho, moradia, arte, cidadania, soberania, humanismo, filosofia etc.
As conquistas científico-tecnológicas no campo da biologia, direcionam-se à prevenção através das vacinas e outros recursos, ao diagnóstico através dos exames biológicos ou dos equipamentos, ao tratamento no caso das drogas, das técnicas e da tecnologia cirúrgica, das intervenções comportamentais etc. Estes se direcionam tanto aos animais ditos inferiores quanto ao ser humano.
Aos animais inferiores, se aplicam as leis de mercado, muito pouco à preservação ambiental ou das espécies.
Ao ser vivo vegetal, os insumos são aplicados quase sempre na ótica do mercado, da cadeia alimentar para o consumo interno ou para gerar divisas e elementos outros como os bio-combustíveis. Pequena escala destina-se à preservação das espécies nativas e à sustentabilidade ambiental. Grande parte direciona-se ao combate às doenças, pragas e sob a forma de fertilizantes agrícolas.
Certa vez num simpósio internacional sobre a esquistossomose mansônica, na cidade de Recife, um pesquisador confidenciou-me que uma vacina para a esquistossomose era tecnicamente plausível, porém não existia interesse de mercado em desenvolvê-la.
Sabe-se que “a esquistossomose é endêmica em 75 a 76 países e encontra-se em expansão em diversos locais do planeta. Estima-se que no mundo 200 milhões de pessoas estejam infectados ou sob risco de infecção. O Brasil é o país mais atingido pela doença na América, mas não há dados atuais sobre a prevalência da esquistossomose no Brasil. Acredita-se que cerca de sete milhões de brasileiros estejam infectados e que pelo menos 35 milhões estejam sob risco de infecção. O índice anual de mortes causadas pela esquistossomose no mundo é de 300 mil a 500 mil pessoas.” (http://portal.saude.gov.br – consultado em 22/06/2007).
Retornando à indagação sobre a vacina humana para a esquistossomose, inquiri sobre os porquês ao pesquisador. A resposta veio pronta: desenvolver uma vacina para o gado tem muito mais interesse para o mercado, que uma vacina para humanos de regiões pobres ou miseráveis e com nenhum poder de reinvidicação de direitos.
Sabemos que tratar doenças transmissíveis já põe a nu a falha primária da falta de atuação adequada no nível preventivo. A prevenção se dá mediante ações do estado, cabendo-lhe traçar um planejamento científico, criativo e adequado a cada realidade, além de eficaz dentro dos recursos de que dispõe.
Não é fastidioso relembrar diante de tantos exemplos de mal versação da coisa pública, que os recursos são e serão sempre advindos de uma única fonte: o cidadão e contribuinte, que outorga ao estado o encargo de gerenciá-lo para erigir o bem estar social e acesso ao progresso para todos.
Na saúde estes devem ser aplicados para possibilitar as conquistas da ciência através da vacinação quando disponível, promovendo uma extensão de cobertura adequada, até e concomitantemente com campanhas de esclarecimento e educação sanitária, campanhas de redução de riscos, identificação dos casos e tratamento dos reservatórios humanos das doenças.
É fácil esta tarefa para o aparelho estatal ─ união, estados federados e municípios? Claro que não.
O tamanho do desafio exige profissionais competentes que saibam administrar tempo e recursos empreendendo medidas conjuntas com base em um projeto multiprofissional e multidisciplinar com uma visão de futuro. Apenas isto determinará índices decrescentes de novos casos de uma doença endêmica numa população, até que se atinjam índices suportáveis, esporádicos e controláveis.
Atingido este patamar, qualquer sanitarista sabe que não terá se extinguido a tarefa de vigilância e controle epidemiológico e de tratamento de novos casos. Estas ações são um continuum, não deixarão de ser desenvolvidas.
Qual o empreendimento que se espera? Muitos gastos em um primeiro momento e gastos continuamente decrescentes durante o seu percurso.
Que medidas adotar no percurso? Cotejar com indicadores científicos confiáveis o caminho percorrido, corrigir rumos quando ditados pela dinâmica dos processos, atualizar e ampliar medidas na direção dos objetivos, adequar os procedimentos às peculiaridades regionais, fiscalizar as ações, cobrar, tornar público e penalizar o seu descumprimento.
A quem se aliar, além de contar com a estrutura da rede pública? Principalmente com setores da sociedade civil organizada envolvida no processo, afim de que dêem sustentabilidade, exerçam o seu poder crítico, funcionem como sensibilizadores da população, promovam o feedback necessário, transmitam envolvimento, entusiasmo e exerçam vários papéis que o estado isoladamente não consegue como redução de danos, prevenção e pressão social com independência.
Em segundo lugar com todos os setores privados ou públicos, especialmente segmentos representativos das comunidades, associações de profissionais de saúde, escolas, universidades, organismos de pesquisa e de fomento à pesquisa, comunidade científica, segmentos artísticos, religiosos, empresariais, formadores de opinião e a mídia em geral, dentre outros.
O objeto institucional passa a ser o de emancipar o cidadão em seu corpo, em seu viver saudável.
Retoricamente temos assistido depoimentos de autoridades públicas que tentam criar antagonismos entre esta ou aquela condição de doença, ou de chaga social.
Quanto se deve gastar com transplantes de órgãos num país de analfabetos? A fome, a miséria são mais ou menos importantes do que a hanseníase? A hepatite C é mais ou menos relevante que o HIV? A hepatite B é mais ou menos relevante que o câncer e a osteoporose? Num país de desdentados, quem deve ter mais privilégio - a educação, o saneamento básico, o aleitamento materno, o amparo ao menor, ou a odontologia social? Que dizer dos índices de mortes por trânsito e pela violência nos campos e nas cidades quando os correlacionamos com a mortalidade neonatal?
Não somos e nem sejamos ingênuos em não enxergar ora a incapacidade do legislador ou gestor público, ora o desconhecimento, ora a má fé (vide a ancestral indústria da seca no nordeste), ora a falta de humildade em admitir o equívoco de certos projetos, ora o imediatismo de querer transferir para frente problemas urgentes e imediatos, ora o interesse político eleitoral, ora o prevalecimento de suas funções, dos momentos de desatenção, de ignorância da população ou de seus pares, para fazer passar medidas e leis que são verdadeiros lobos em pele de ovelha.
A política é um jogo de interesses bem se sabe, porém um jogo que não tem frequentemente perpassado por ideários e ideologias humanistas e sim por interesses grupais e individuais, muitos dos quais a serviço do grande capital concentrador de renda e de poder. Quando não pela execrável falta de caráter e de ética a serviço de interesses pessoais.
Leis e dispositivos que nos afastam mais e mais de conquistas, de avanços, de progresso e de representatividade não deveriam ser bem vindas e sim rechaçadas.
Mesmo aquelas aparentemente permeadas por um discurso de racionalidade, de cientificismo e esboçadas por grupos ou pessoas ilibadas. Estas podem estar equivocadas nas suas pretensões, por dominarem apenas aspectos parciais e premidas pela sofreguidão imediatista de resolver causas situacionais.
A história da prevenção, tratamento das hepatites B e C e de suas complicações através do transplante hepático e da assistência médica especializada no Brasil, demonstra bem que a disponibilidade de recursos diagnósticos, terapêuticos, de ações preventivas e de ações destinadas à redução de danos ainda é ínfima quando comparada ao que se necessita atingir.
Não possuímos (população e profissionais envolvidos) conhecimento claro, objetivo e transparente das ações estratégicas, das metas anuais para o país, regiões e estados da federação.
Rigorosamente desconhecemos e pouco presenciamos as ações educativas, as campanhas veiculadas pela mídia, as prestações de contas e os debates públicos sobre este aspecto, pelos que exercem o encargo de coordená-los e gerenciá-los.
Nada sabemos sobre o grau de prioridade dado a estas duas epidemias graves, na hierarquia das ações sanitárias que o estado tem a cumprir.
Acresçam-se a estas constatações as imensas discrepâncias que ocorrem de estado para estado, de município a município e de região a região, como gestores finais dos recursos e das políticas de saúde.
Se em realidade temos que elogiar dentre os avanços sociais a concepção do Sistema Único de Saúde, por outro lado fica difícil entender como descentralizar direitos constitucionais sem fiscalizá-los rigorosamente.
Ao sabor dos interesses políticos, o cidadão doente, especialmente o mais carente, é enxotado de burocrata em burocrata, mendigando um tratamento instituído pelo médico. Ao léu, milhares de outros nem sabem que são portadores de uma doença silenciosa e mortal, cujo epílogo quando não tratada, é a cirrose hepática e/ ou o carcinoma hepatocelular. Como médico hepatologista atuante tanto entre a população atendida pelo SUS como em serviço privado, posso afirmar que assistimos impotentes, serem definitivamente silenciados pela morte um contingente expressivo de cidadãos. Na maioria das vezes por falta de diagnóstico precoce e de tratamento. Em muitas ocasiões fruto de co-morbidades como a esquistossomose, o alcoolismo, o HIV dentre outras.
Não vamos mencionar as dificuldades das estruturas públicas que se destinam aos transplantes hepáticos, da fragilidade das campanhas de doação e das limitações por que passam os pós-transplantados quando chegam à condição de necessitarem usufruir do seguimento médico pós transplante. Os recursos do Sistema Único de Saúde (SUS), embora suficientes para as equipes, prevêem o ato do transplante, mas não uma boa assistência ambulatorial ao transplantado quando no decorrer da sua vida.
É habito generalizado culpar o profissional de saúde pelos insucessos e vieses das políticas deste setor. Ao aprovar determinado medicamento para o tratamento de determinadas enfermidades, há de se convir que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) o faça não apenas para repetir a eficácia das medicações já existentes, nem para apenas ampliar o leque do mercado, como se agisse com bens secundários e não com aqueles essenciais à saúde e à vida.
Via de regra, presenciamos a inclusão no mercado interno de medicações anti-virais que se prestam a superar os benefícios trazidos por outras, minorar os efeitos adversos acarretados por algumas, corrigir a ineficácia de certas outras, resgatar a ação em dado momento onde houve mutação viral, reduzir o tempo de tratamento em algumas situações e assim por diante.
As bulas destas medicações bem como os dossiês de pesquisa, até que uma droga nova chegue ao mercado, passam pelo que se saiba, por critérios rigorosos de aprovação.
A veiculação da propaganda endereçada aos profissionais de saúde, pelo que tenhamos conhecimento, é arbitrada e fiscalizada tanto pela ANVISA, quanto pelos conselhos federais e regionais de exercício profissional.
Os profissionais de saúde, quando pesquisadores de um determinada droga, estão obrigados a declinar em publicações ou em pronunciamentos públicos nos fóruns científicos a sua relação com a empresa farmacêutica que financia a pesquisa ou que o financiam como conferencista.
Seria leviano e grave afirmar que o “lobby” da indústria farmacêutica existisse junto à ANVISA, influenciando na aprovação de determinados medicamentos, tanto quanto que o profissional de saúde esteja sendo cooptado pela indústria farmacêutica.
No que tange às hepatites virais, o que mais presenciamos nos últimos anos, foram faltas cíclicas de medicamentos provocadas pelo não pagamento das secretarias de saúde às empresas fornecedoras, compras de medicamento sem critérios licitatórios através de pregões públicos transparentes a de custo mais baixo, incapacidade, profunda negligência ou supostamente má fé ou má versação de recursos para este fim.
Não fora os reclamos e a pressão da sociedade civil já há vários anos, não teríamos tido a compra centralizada para os Interferons Peguilados, recém adotada pelo Ministério da Saúde. Esta medida sabidamente proporcionou uma redução de custos para os cofres da nação.
Outra medida racionalizadora seria a institucionalização universal dos pólos de aplicação e da atenção multidisciplinar ao portador de hepatite. Que exceções sejam feitas para áreas geograficamente distantes ou de difícil acesso. Vários estados, inclusive no estado da Paraíba, não possuindo pólos de aplicação, desperdiçam o interferon peguilado, o que redunda em custos elevados.
O problema do diagnóstico continua seríssimo, especialmente a biologia molecular, a biópsia e a histopatologia.
O protocolo para tratamento deveria prever atualizações que não são consideradas e não possuem previsão para tal, obrigando as ações judiciais, que passam a ser estimuladas até pelos gestores, como forma de atender fora do protocolo às situações insustentáveis.
As medicações coadjuvantes como a filgrastima e a eritropoetina agindo para minimizar os efeitos da Ribavirina e da Filgrastima, não constam dos protocolos, implicando em reduções e suspensões de drogas e inviabilizando um maior percentual de cura; consequentemente desperdiçando recursos materiais significantes com tratamentos sabidamente ineficazes.
O que dizer das campanhas educativas e de esclarecimento? Como se admite um programa nacional que não tem visibilidade nem ações de divulgação efetivas junto à população.
Qualquer programa ou campanha populacional necessita de uma boa estruturação para que não seja desacreditado pela população alvo. Caso contrário estará prestando o desserviço do desgaste e do descrédito das instituições. Aqui não nos referimos apenas ao PNHV de per si, mas à falta de fiscalização e coordenação por este, aliada à falta de compromisso por inúmeros gestores estaduais e municipais.
Diante desta situação, como entender o projeto do senador Tião Viana, vizando restringir dois direitos constitucionais : o direito à saúde como função do estado e o direito de recorrer à instancia judicial quando este direito for descumprido ou negado pelo aparelho estatal?
Desconhecer que o viés do custo para todas as ações necessárias ao controle e tratamento das hepatites virais é um grande desafio, é impossível a quem vislumbre o problema com sensatez.
Desconhecer que a responsabilidade do estado brasileiro é abordá-lo cientifica e criativamente, sem deixá-lo ceifar inúmeras vidas e avolumar-se, é insensatez e negligência grave.
Fossem a agropecuária ameaçada, a gripe aviária ou a questão energética, rapidamente partiríamos para enfrentá-los com medidas de alto custo. Seria alvo de manchetes de jornais, de campanhas e entrevistas de gestores preocupados com a economia, o desenvolvimento e a soberania nacional.
Não se recomenda trocar a luz elétrica pelo candeeiro, a menos que se esteja em situação de guerra ou cataclismo. Os desafios nacionais que se está encarando para a pesquisa científica, a produção de eritropoetina, da lamivudina, da ribavirina a baixo custo bem como para a produção do interferon padrão são produtos da necessidade de superar problemas. Temos a convicção que tal e qual com o ocorrido com os portadores do vírus HIV, a pressão da sociedade civil em seus núcleos, grupos de apoio e organizações não governamentais foram decisivos para os avanços verificados. Em muitas ocasiões isto se deveu ao aprendizado da necessidade de união e solidariedade, ao uso da via judicial e à compreensão do ministério público.
Isto significa estímulo ao avanço científico, tecnológico, político e social.
Restringir o direito ao invés de aprimorar mecanismos para vencer desafios, é retrocesso e equívoco que respinga na democracia e tem a mácula do obscurantismo.
Waldir Pedrosa Amorim
presidente da ONG Confiantes no Futuro
médico hepatologista - membro titular da Sociedade Brasileira de Hepatologia
ex-professor adjunto IV da disciplina de gastroenterologia da UFPB

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